“Cinquenta Tons Mais Escuros” não é empoderador, é abuso

O protagonista “romântico” é Christian Grey, um indivíduo profundamente perturbado que começa a perseguir a ingênua e virginal Ana imediatamente. Christian é ciumento, controlador e manipulador e tem propensão à violência sexual (esse homem é visivelmente problemático). Ele tenta até persuadir a Ana a assinar um contrato que faz com que ele tenha total controle sobre ela, obrigando-a a estar disponível para fazer sexo com ele sempre que ele assim solicite e permitindo até que ele dite o que e quando ela pode comer.

Ah, o amor não é grandioso?

Uma análise do primeiro livro revelou que o relacionamento (supostamente) romântico entre Christian e Ana se caracteriza como violência doméstica. Usando as definições estabelecidas pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, pesquisadores descobriram que o abuso emocional e a violência sexual perpassam toda a obra e que o abuso emocional estava presente em “praticamente todas as interações”. Isso pode ser notado na forma que Christian persegue Ana, acompanhando seus movimentos via recursos tecnológicos de celulares e computadores e limitando seu envolvimento social e na forma que ele a intimida e ameaça.

Os pesquisadores identificaram violência sexual em várias ocasiões, incluindo vezes em que Christian iniciou encontros sexuais enquanto estava com raiva, ignorando os limites de Ana e fazendo uso de ameaças e de álcool para comprometer o consentimento dela.

“Não, por favor. Eu não posso fazer isso. Agora não. Eu preciso de um tempo. Por favor.”

“Ah, Ana, não pense demais sobre isso.”

“Não”, eu protesto, tentando chutá-lo para longe de mim. Ele para.

“Se você resistir, eu vou amarrar seus pés, também. Se você fizer barulho, Anastasia, eu vou te amordaçar”.

Apesar de tudo isso, Cinquenta Tons se tornou um fenômeno global, inspirando toda sorte de produtos, incluindo lingerie, vinhos, brinquedos sexuais, pacotes de hotéis, kits de lojas de ferragens com corda e fita adesiva, e até mesmo bodies de bebê estampados com algemas e o slogan “Eu finjo que Christian Grey é meu papai”.

Então, o que acontece quando uma série de filmes dessa magnitude representa a violência doméstica e a violência de homens contra mulheres como algo sexy e desejável? Que mensagem isso passa para mulheres e garotas, mas também para homens e garotos? Quem se beneficia da aceitação em massa da crença de que mulheres e garotas secretamente desejam e gostam da violência sexual?

É claro que nem todo mundo se preocupa com isso. Em meu trabalho de campanha pra o movimento Collective Shout: for a world free os sexploitation [Coletivo Grito: por um mundo livre da exploração sexual], eu interagi com várias fãs dos livros que argumentam que Cinquenta Tons é apenas uma obra de ficção e que, portanto, não influencia em nada. Nós falamos sobre esse e outros argumentos comuns em nosso site.

É alarmante que muitas das pessoas que defenderam Cinquenta Tons e argumentaram que a obra não tinha nenhum impacto sobre as atitudes das mulheres ou sobre a violência dos homens contra as mulheres tenham despejado diversos mitos e desinformações sobre a violência doméstica, mostrando um desentendimento profundo dessas questões. Se essas atitudes e crenças já existem na sociedade, elas são fortemente reforçadas em Cinquenta Tons.

Já me disseram que Cinquenta Tons não retrata um relacionamento abusivo, porque o Christian nunca bate nela (como se violência doméstica se limitasse às agressões físicas). Outro argumento com que me deparei foi o de que se ela não gostasse do que acontecia, ela terminaria, o que demonstra novamente a falta de compreensão sobre medo, o poder em relacionamentos e a complexidade de situações que envolvem violência doméstica.

Outros ainda minimizaram ou defenderam os comportamentos abusivos de Christian Grey, alegando que sua tendência à perseguição e ao controle eram prova do quanto ele a amava, que eram perdoáveis já que ele mesmo havia sido uma vítima, ou que eram irrelevantes, porque “no fim ele muda”.

Em contraste cruel com a história da Cinderla em que (spoiler) o abusador pode mudar se sua vítima ficar com ele e o amar o suficiente, a realidade ‘que a violência tende a se agravar com o tempo. Como ressalta a autora Gail Dines, “Os abrigos de mulheres agredidas e os cemitérios estão cheios de mulheres que tiveram o azar de conhecer um Christian Grey”.

Grupos de mulheres ao redor do mundo se juntaram para pedir um boicote em resposta à trilogia. O Colletctive Shout, o Centro de Mulheres Abusadas de Londres, o Culture Reframed e o Centro Nacional de Exploração Sexual se uniram a dezenas de grupos na campanha internacional Fifty Dollars Not Fifty Shades [Cinquenta Dólares, Não Cinquenta Tons].

A campanha pede para que o público boicote o filme e doe cinquenta dólares (ou outra quantia) a organizações que trabalhem com violência doméstica ou com mulheres refugiadas, porque, no mundo real, é nesses lugares que mulheres como Ana acabam.

Nós esperamos que as pessoas façam a conexão entre uma cultura que sexualiza, perdoa, tolera e glorifica a violência dos homens contra as mulheres e a violência contra as mulheres na vida real. Quantas vidas femininas dependem disso?

Tradução de Bruna de Lara.
Artigo originalmente publicado em Huffington Post – Austrália.






Sobre a inteligência, a força e a beleza feminina.